segunda-feira, 3 de junho de 2019

O prazer da leitura (II)

A leitura cria em si múltiplas imagens, as do leitor em si, mas também aquilo que as obras de arte permitem desvendar  no nosso olhar. E, neste caso os objectos que aproximam a leitura dos espaços de intimidade, onde ela decorreu em diferentes momentos do passado podem também criar um conjunto de imagens, de ideias sobre a sociedade que viu nascer essas formas de expressão. O século XVIII foi em  muitos aspectos uma forma de explorar novas atmosferas, descobrir outras linhas para habitar o quotidiano.

Pierre-Antoine Baudoin pintou no século XVIII um quadro que nos conduz novamente ao prazer da leitura, embora aqui com dimensões novas. A marquesa de Pompadour figura conhecida da aristocracia e da realeza francesa de Setecentos tinha em Pierre-Antoine Baudoin o seu pintor preferido e a abordagem que ele faz neste quadro de 1760 é diferente do conhecido feito por François Boucher, onde a leitura aparece numa pose mais ocupacional do tempo. 

Aqui, no retrato de Pierre-Antoine Baudoin, a marquesa de Pompadour está numa atitude descontraída, habitada por um abandono, como quem descansa no seu quarto e onde se notam diversos objectos de um quotidiano, o biombo e o dossel da cama. Aqui ao contrário do quadro de François Boucher tudo se define numa ideia de letargia, a apontar a um sonho, permitida pela leitura. O livro escorrega-lhe da mão e cai acompanhando os outros objectos de uma intimidade feminina, o cão e o alaúde, assim como outros livros aparecem junto a uma mesa, onde ela descai a sua mão. 

A marquesa de Pompadour tem neste quadro uma representação de alguma letargia, a invocar uma intimidade que pode partir da leitura para chegar a outros domínios. O aberura do seu corpete revela uma intimidade de instante de quem prolonga o dia no seu quarto. O quadro revela-nos, como o salientou Rousseau uma ideia de uma viagem rápida entre o livro e o seu sonho que se define no globo e nos mapas numa das mesas do quarto. Na verdade, não sabemos se a atitude de letargia é um abandono ao próprio corpo, a uma prazer sensorial ou a uma espera de uma amante distante. 

A leitura enquadrada assim é sem dúvida uma construção de uma imagem de prazer, mas este pode ser mais alguma coisa, pode indicar que aquela é uma libertação capaz de construir ambientes frívolos, desgovernados de uma razão, de uma moral. No fundo o prazer da leitura poderá ser aqui a construção da ideia que o século XVIII assistiu por diferentes autores, da corrupção dos valores morais. Apesar das possibilidades desta interpretação, o que Pierre-Antoine Baudouin nos concede é algo mais elevado.

Diderot falou deles. Dessa clientela que sob o pano de uma moralidade de costumes eram apenas "abades insignificantes, jovens advogados de mente frívola, magnatas corpulentos e outras pessoas de mau gosto". No fundo todos os que observam e criticam esta abordagem frívola de uma mulher a ler o que pretendem é chegar a esses pensamentos sensuais que a sua figura profisisonal não aconselha. A hipocrisia de um mundo burguês expressa-se aqui de uma forma brilhante. A leitura emergiu no século XVIII como uma construção de atmosferas de intimidade, de um erotismo a caminhar para as possibilidades de um novo mundo, ainda que individual.

Imagem: Copyright – Pierre-Antoine Baudouin, A leitora, c. 1760, Museu das Artes Decorativas, Paris.
Fonte: Stefan Bollmann, “Uma História da leitura, do século XIII ao século XXI”, Círculo de Leitores, Lx: 2005.