A leitura
cria em si múltiplas imagens, as do leitor em si, mas também aquilo que
as obras de arte permitem desvendar no nosso olhar. E, neste caso os
objectos que aproximam a leitura dos espaços de intimidade, onde ela
decorreu em diferentes momentos do passado podem também criar um
conjunto de imagens, de ideias sobre a sociedade que viu nascer essas
formas de expressão. O século XVIII foi em muitos aspectos uma forma de
explorar novas atmosferas, descobrir outras linhas para habitar o
quotidiano.
Pierre-Antoine
Baudoin pintou no século XVIII um quadro que nos conduz novamente ao
prazer da leitura, embora aqui com dimensões novas. A marquesa de
Pompadour figura conhecida da aristocracia e da realeza francesa de
Setecentos tinha em Pierre-Antoine Baudoin o seu pintor preferido e a
abordagem que ele faz neste quadro de 1760 é diferente do conhecido
feito por François Boucher, onde a leitura aparece numa pose mais
ocupacional do tempo.
Aqui, no
retrato de Pierre-Antoine Baudoin, a marquesa de Pompadour está numa
atitude descontraída, habitada por um abandono, como quem descansa no
seu quarto e onde se notam diversos objectos de um quotidiano, o biombo e
o dossel da cama. Aqui ao contrário do quadro de François Boucher tudo
se define numa ideia de letargia, a apontar a um sonho, permitida pela
leitura. O livro escorrega-lhe da mão e cai acompanhando os outros
objectos de uma intimidade feminina, o cão e o alaúde, assim como outros
livros aparecem junto a uma mesa, onde ela descai a sua mão.
A marquesa
de Pompadour tem neste quadro uma representação de alguma letargia, a
invocar uma intimidade que pode partir da leitura para chegar a outros
domínios. O aberura do seu corpete revela uma intimidade de instante de
quem prolonga o dia no seu quarto. O quadro revela-nos, como o salientou
Rousseau uma ideia de uma viagem rápida entre o livro e o seu sonho que
se define no globo e nos mapas numa das mesas do quarto. Na verdade,
não sabemos se a atitude de letargia é um abandono ao próprio corpo, a
uma prazer sensorial ou a uma espera de uma amante distante.
A leitura
enquadrada assim é sem dúvida uma construção de uma imagem de prazer,
mas este pode ser mais alguma coisa, pode indicar que aquela é uma
libertação capaz de construir ambientes frívolos, desgovernados de uma
razão, de uma moral. No fundo o prazer da leitura poderá ser aqui a
construção da ideia que o século XVIII assistiu por diferentes autores,
da corrupção dos valores morais. Apesar das possibilidades desta
interpretação, o que Pierre-Antoine Baudouin nos concede é algo mais
elevado.
Diderot
falou deles. Dessa clientela que sob o pano de uma moralidade de
costumes eram apenas "abades insignificantes, jovens advogados de mente
frívola, magnatas corpulentos e outras pessoas de mau gosto". No fundo
todos os que observam e criticam esta abordagem frívola de uma mulher a
ler o que pretendem é chegar a esses pensamentos sensuais que a sua
figura profisisonal não aconselha. A hipocrisia de um mundo burguês
expressa-se aqui de uma forma brilhante. A leitura emergiu no século
XVIII como uma construção de atmosferas de intimidade, de um erotismo a
caminhar para as possibilidades de um novo mundo, ainda que individual.
Imagem: Copyright – Pierre-Antoine Baudouin, A leitora, c. 1760, Museu das Artes Decorativas, Paris.
Fonte: Stefan Bollmann, “Uma História da leitura, do século XIII ao século XXI”, Círculo de Leitores, Lx: 2005.
