Na liberdade criativa de uma vida, espaço formulado também pelas possibilidades da leitura existem histórias que nos deliciam. Ela também nos pode confinar a um ponto de esperança quando uma catástrofe ocorre. Passou-se com Dylan Thomas, o conhecido poeta irlandês, no tempo da sua infância. É ele próprio que a conta em A Child’s Christmas in Wales.
Uma vizinha da sua
casa sofre um incêndio que consome uma sala inteira da casa. Após o fogo
debelado que consumiu uma sala inteira e no meio da confusão e
dos objectos encharcados, a senhora Prothero exclama esta frase deliciosa aos
bombeiros: “Quererão agora ler um pouco?”.
Era um consolo
naquela de bonomia de um tempo e de uma forma de ser, mas ela dá-nos também essa ideia
tão necessária de que a existência e o real podem ser suportados, mesmo que
ligeiramente pela literatura. O próprio Flaubert viu nesta inspiração uma
espécie de “orgia perpétua”e com ela nos seduziu com as aventuras de Madame Bovary.
Esta orgia perpétua
não é mais que uma forma continuada de ler, de encontrar nessa expressão não só
a própria liberdade, mas também o seu significado mais primordial, uma ideia de
sagrado, uma forma de individualmente aceder a um culto de divindade, próprio e
irrepetível noutros.
Sim,
a leitura não
preenche a vida e esta aprende-se vivendo, mas como disse Günter Bruyn,
“aprende-se
da leitura, lendo”, e este foco sobre tantas vidas de tantas
possibilidades e
experiências é sem dúvida um modo de com esse olhar chegar a um
conhecimento
que nos ilucida a nós próprios sobre a nossa própria vida. Essa orgia de
leitura acaba por superar muitas vezes a nossa própria experiência, pois
ela é muito variada e rica nas leituras feitas. Não só se está perto da
vida dos
outros lendo, como se acede a um amor, “ama-se o amor dos outros”, nas
palavras
iluminadas de Elke Heidenreich.
A leitura permite pois, uma construção individual, mas também pode apresentar-se como alienação do real, capaz de alguns
desastres. Bluma Lennon morreu na esquina de uma rua de Buenos Aires ao ler um
poema de Emily Dickinson que a fazia desligar do real, segundo a narrativa
inicial de A Casa de Papel. É um ponto extremo, mas todos sabemos que ao longo
dos séculos XVIII e XIX a advertência aos perigos da leitura eram uma forma de
condicionar projectos de vida, de amarrar pessoas, e, sobretudo mulheres a
modelos sociais e culturais.
É ainda de Elke Heidenreich
essas palavras que nos devolvem o valor inestimável da leitura. “A leitura
questiona não só o projecto de vida, como também as directivas de instâncias
superiores, tais como Deus, o marido, o governo e a Igreja. A leitura dá asas à
fantasia e esta última afasta do presente, mas para onde?” Pergunta importante,
pergunta sem resposta, pois depende da individualidade, da história de cada um.
Tudo na leitura é fonte e processo incontrolável.
E todos sabemos que
os legitimados nas palavras burocráticas, como sacerdotes e governos desconfiam
das palavras voadoras, das palavras incontroláveis, essas que amamos na
respiração das coisas. E, talvez só Deus mesmo nos acompanhe nessa compreensão
pela viagem das palavras, como o sentiu Virginia Woolf ao dizer-nos que o próprio
Deus acolhendo todos no seu trono celestial dirá, “Olha, estes não precisam de
recompensa. Nada temos para lhes dar aqui. Eles amavam a leitura.”
Imagem: Copyright – Duncan
Grant, O fogão, Fitzroy Square, 1936, Espólio de Ducan Grant. (via https://theartstack.com)
Fonte: Elke Heidenreich, “Do perigo
de as mulheres lerem demasiado”, in Stefan B0llmann, Uma história da leitura
desde o século XIII ao século XXI, Círculo de Leitores, Lx: 2005.

