segunda-feira, 13 de maio de 2019

A leitura - um espaço do sagrado

Na liberdade criativa de uma vida, espaço formulado também pelas possibilidades da leitura existem histórias que nos deliciam. Ela também nos pode confinar a um ponto de esperança quando uma catástrofe ocorre. Passou-se com Dylan Thomas, o conhecido poeta irlandês, no tempo da sua infância. É ele próprio que a conta em A Child’s Christmas in Wales.

Uma vizinha da sua casa sofre um incêndio que consome uma sala inteira da casa. Após o fogo debelado que consumiu uma sala inteira e no meio da confusão e dos objectos encharcados, a senhora Prothero exclama esta frase deliciosa aos bombeiros: “Quererão agora ler um pouco?”.

Era um consolo naquela de bonomia de um tempo e de uma forma de ser, mas ela dá-nos também essa ideia tão necessária de que a existência e o real podem ser suportados, mesmo que ligeiramente pela literatura. O próprio Flaubert viu nesta inspiração uma espécie de “orgia perpétua”e com ela nos seduziu com as aventuras de Madame Bovary.

Esta orgia perpétua não é mais que uma forma continuada de ler, de encontrar nessa expressão não só a própria liberdade, mas também o seu significado mais primordial, uma ideia de sagrado, uma forma de individualmente aceder a um culto de divindade, próprio e irrepetível noutros.

Sim, a leitura não preenche a vida e esta aprende-se vivendo, mas como disse Günter Bruyn, “aprende-se da leitura, lendo”, e este foco sobre tantas vidas de tantas possibilidades e experiências é sem dúvida um modo de com esse olhar chegar a um conhecimento que nos ilucida a nós próprios sobre a nossa própria vida. Essa orgia de leitura acaba por superar muitas vezes a nossa própria experiência, pois ela é muito variada e rica nas leituras feitas. Não só se está perto da vida dos outros lendo, como se acede a um amor, “ama-se o amor dos outros”, nas palavras iluminadas de Elke Heidenreich.

A leitura permite pois, uma construção individual, mas também pode apresentar-se como alienação do real, capaz de alguns desastres. Bluma Lennon morreu na esquina de uma rua de Buenos Aires ao ler um poema de Emily Dickinson que a fazia desligar do real, segundo a narrativa inicial de A Casa de Papel. É um ponto extremo, mas todos sabemos que ao longo dos séculos XVIII e XIX a advertência aos perigos da leitura eram uma forma de condicionar projectos de vida, de amarrar pessoas, e, sobretudo mulheres a modelos sociais e culturais.

É ainda de Elke Heidenreich essas palavras que nos devolvem o valor inestimável da leitura. “A leitura questiona não só o projecto de vida, como também as directivas de instâncias superiores, tais como Deus, o marido, o governo e a Igreja. A leitura dá asas à fantasia e esta última afasta do presente, mas para onde?” Pergunta importante, pergunta sem resposta, pois depende da individualidade, da história de cada um. Tudo na leitura é fonte e processo incontrolável.

E todos sabemos que os legitimados nas palavras burocráticas, como sacerdotes e governos desconfiam das palavras voadoras, das palavras incontroláveis, essas que amamos na respiração das coisas. E, talvez só Deus mesmo nos acompanhe nessa compreensão pela viagem das palavras, como o sentiu Virginia Woolf ao dizer-nos que o próprio Deus acolhendo todos no seu trono celestial dirá, “Olha, estes não precisam de recompensa. Nada temos para lhes dar aqui. Eles amavam a leitura.”

Imagem: Copyright – Duncan Grant, O fogão, Fitzroy Square, 1936, Espólio de Ducan Grant. (via https://theartstack.com)
Fonte: Elke Heidenreich, “Do perigo de as mulheres lerem demasiado”, in Stefan B0llmann, Uma história da leitura desde o século XIII ao século XXI, Círculo de Leitores, Lx: 2005.

quinta-feira, 9 de maio de 2019

O prazer da leitura (I)

 A leitura será sempre uma viagem a transportar-nos entre nós e o mundo, entre nós e amplos mundos. Viagem feita de conhecimento, de descoberta e prazer. Viagem a sobrepor-se ao espaço físico, ao tempo emerso no real de cada um.  A leitura é tudo isto, mas aquilo que a tornou de um certo modo mais pertinente a alguns leitores, foi o prazer que ela podia albergar, que esse podia ser o seu móbil mais decisivo.

Foi o século dos iluministas que encontrou essa possibilidade. Esse prazer relacionou-se com aquilo que a sociedade burguesa haveria de designar os prazeres da vida privada. Essa ideia que também foi designada no título de um quadro do século XVIII, justamente de Jean-Siménon Chardin apelava mais ao espaço de lazer, de fruição no quotidiano, do que do prazer. Falemos dele.

O quadro de Chardin falava sobretudo de uma forma de disfrutar lazer, como tempo do quotidiano. O quadro mostra-nos uma mulher sentada de um modo muito confortável numa grande poltrona e que segura no seu colo um livro. Ao fundo do quadro encontramos objectos diversos, uma mesa com roda de fiar, uma terrina e um espelho e um armário com a porta entreaberta. Os elementos do quadro dão-nos então os sinais de uma vida privada, não necessariamente de um prazer no quotidiano. As cores da mulher são muito mais vivas que o do resto do espaço habitado. A cor terá aqui a função de separar as ideias de prazer e lazer?

No quadro o livro aparece-nos a dizer que este momento é apenas um entre outros dedicado a outras tarefas. Não existem testemunhas que interrompam o momento, ou que solicitem algo, que habitem o espaço. Ela também não está a ler, parece apenas meditar em algo lido. Não existe um ponto de referência para essa leitura, ela parece vaguear em algo que nós não conhecemos e o seu olhar talvez seja só o efeito dessa leitura, o momento em que ela cria uma imagem do mundo, a sua. E é isso que faz um grande leitor, o momento para a criação das imagens que a leitura permitiu realizar.

Imagem: Copyright – Jean-Siménon Chardin, Os prazers da vida privada, 1746, Museu Nacional de Belas-Artes da Suécia, Estocolmo.
Fonte: Stefan Bollmann, “Uma História da leitura, do século XIII ao século XXI”, Círculo de Leitores, Lx: 2005.