A
leitura tem em si um espelho sobre o que foram as formas de evolução
social e cultural ao longo de diferentes séculos. A sua afirmação dentro
da sociedade do século XX, na evolução do seu papel formador de
opiniões vinda de Oitocentos não permitem esconder o papel desconfiado
que muitos tiveram dela. Os elementos mais conservadores na ordem social
sempre temeram o seu papel, sobretudo porque ela podia ter grandes
influências naquilo que podemos designar a ordem do privado, o espaço da
intimidade.
As
possibilidades de a leitura se realizar autonomamente na área do
privado, significa que estava fora do alcance público e mais importante,
escapava aos mecanismos de controle da sociedade, as suas ferramentas
de vigilância. A leitura no espaço da intimidade reformulou os
mecanismos do possível na ordem social, porque ela se fazia no interior
do que é uma das suas mais belas formas de se realizar, a leitura
silenciosa e individual.
A
partir do Iluminismo já se pode falar de uma leitura silenciosa e ela
certamente ajudou a compreender a necessidade de grandes transformações,
alimentando caminhos de outros possíveis. Mas foi na Idade Média que
essa construção da leitura silenciosa enfrentou significativas
dificuldades. É conhecido o episódio de Santo Agostinho que nas suas
Confissões retrata algo que o surpreendeu na leitura do bispo Ambrósio
de Milão. O que Santo Agostinho achava admirável era que o bispo não lia
em voz alta, mas apenas fazia circular os seus olhos pelo livros.
Esta
leitura silenciosa do bispo Ambrósio era de um grande significado, pois
o que os seus olhos liam eram contemplados no sentido em si,
fazia-lhe poupar tempo e permitia a construção de uma relação íntima com
o objecto da leitura. E era sem dúvida a construção de uma intimidade
com o objecto das palavras, o seu significado e uma forma de refúgio do
mundo, e, ao mesmo tempo uma forma de construção pessoal.
A
leitura silenciosa permitia essa construção íntima e pessoal de um
sentido, mas ela também revelava as possibilidades que um leitor pode
desenvolver, naquilo que hoje damos o nome de Literacias. É
significativo que uma leitura de olhar, uma leitura oblíqua, uma leitura
de imagens reveladas são aspectos desconhecidos a um não leitor, a
alguém que tem falhas de competência na leitura.
Fonte: Stefan Bollmann, “Uma História da leitura, do século XIII ao século XXI”, C.L., Lx: 2005.
Imagem: Iluminura do século XIII (Bibliothèque Sainte-Geneviève, Paris, MS 2200, folio 58).

