terça-feira, 23 de julho de 2019

A leitura silenciosa (I)

 

A leitura tem em si um espelho sobre o que foram as formas de evolução social e cultural ao longo de diferentes séculos. A sua afirmação dentro da sociedade do século XX, na evolução do seu papel formador de opiniões vinda de Oitocentos não permitem esconder o papel desconfiado que muitos tiveram dela. Os elementos mais conservadores na ordem social sempre temeram o seu papel, sobretudo porque ela podia ter grandes influências naquilo que podemos designar a ordem do privado, o espaço da intimidade.
As possibilidades de a leitura se realizar autonomamente na área do privado, significa que estava fora do alcance público e mais importante, escapava aos mecanismos de controle da sociedade, as suas ferramentas de vigilância. A leitura no espaço da intimidade reformulou os mecanismos do possível na ordem social, porque ela se fazia no interior do que é uma das suas mais belas formas de se realizar, a leitura silenciosa e individual.

A partir do Iluminismo já se pode falar de uma leitura silenciosa e ela certamente ajudou a compreender a necessidade de grandes transformações, alimentando caminhos de outros possíveis. Mas foi na Idade Média que essa construção da leitura silenciosa enfrentou significativas dificuldades. É conhecido o episódio de Santo Agostinho que nas suas Confissões retrata algo que o surpreendeu na leitura do bispo Ambrósio de Milão. O que Santo Agostinho achava admirável era que o bispo não lia em voz alta, mas apenas  fazia circular os seus olhos pelo livros. 

Esta leitura silenciosa do bispo Ambrósio era de um grande significado, pois o que os seus olhos liam eram contemplados no sentido em si, fazia-lhe poupar tempo e permitia a construção de uma relação íntima com o objecto da leitura. E era sem dúvida a construção de uma intimidade com o objecto das palavras, o seu significado e uma forma de refúgio do mundo, e, ao mesmo tempo uma forma de construção pessoal.

A leitura silenciosa permitia essa construção íntima e pessoal de um sentido, mas ela também revelava as possibilidades que um leitor pode desenvolver, naquilo que hoje damos o nome de Literacias. É significativo que uma leitura de olhar, uma leitura oblíqua, uma leitura de imagens reveladas são aspectos desconhecidos a um não leitor, a alguém que tem falhas de competência na leitura. 

Fonte: Stefan Bollmann, “Uma História da leitura, do século XIII ao século XXI”, C.L., Lx: 2005.
Imagem: Iluminura do século XIII (Bibliothèque Sainte-Geneviève, Paris, MS 2200, folio 58).

terça-feira, 9 de julho de 2019

Os perigos da leitura

 


A expansão da leitura em determinados círculos mais instruídos do século XVIII criou um conjunto de imagens que conduziram aquela para uma construção de imagens, de que a arte deu conta de um modo significativo. A leitura como prazer, já por aqui brevemente discutida oscilou entre a atribuição de um significado aos espaços de intimidade do lar e uma visão mais moralista, os pensamentos que os leitores acalentavam para eles próprios. Jean-Siméon Chardin e Pierre-Antoine Baudoin foram dois pintores, entre outros que deram corpo a essas duas visões sobre o prazer da leitura.

A leitura, no seu acto de ler foi ela própria analisada no interior da sociedade do século XVIII, como um fenómeno muito útil, pois incentivava a construção de uma vida mais virtuosa. Outros viam nessa ideia de trazer consigo um livro e a ele dedicar-lhe bastante tempo diário o sinal de um declínio inexorável dos costumes e da própria organização social. Alguns que se dedicavam ao comércio do livro chegavam a pronunciar a ideia fatal de que o livro tinha trazido tanta infelicidade à vida privada das pessoas, como a Revolução Francesa à vida pública da sociedade. 

Mesmo no interior do iluminismo chegou-se a ouvir que a leitura ao limitar os movimentos físicos e colocando muito valor na imaginação e no despertar das emoções daria um incentivo a modos de um certo vício aristocrático, como o tinham visto em séculos passados.  Foi uma campanha que se desenvolveu em finais de Setecentos no sentido de moralizar a sociedade e sobretudo de domesticar o alcance da leitura no feminino. Estas diligências não obstruíram o progresso da leitura individual na Europa e na América do Norte entre os séculos XVIII e XIX.

Apesar desses progressos, a leitura como fenómeno de grande alcance cultural e social apenas se concretizaria no século XX. E ocorreu no seio de grandes transformações sociais, como foram a industrialização, a democratização de algumas sociedades e as mudanças na educação. O século XX ao elevar a um grande significado as capacidades da literacia entre todas as classes sociais e ao prolongar a instrução no tempo favoreceu esta expansão da leitura. 

Estas transformações deram a possibilidade de acelerar o papel da leitura, como elemento transformador das sociedades e das possibilidades individuais de cada um.  E, nesse sentido, as ameaças da leitura vista em séculos anteriores tornar-se-iam o motor de uma real transformação da sociedade e trariam a todos, as imensas capacidades da leitura para mudar o pensamento e assim a acção de cada um no interior de um tempo social e cultural.

Imagem: copyright: Jean-Honoré Fragonard, A leitor, c. 1776, National Gallery of Art, Washington.
Fonte: Stefan Bollmann, “Uma História da leitura, do século XIII ao século XXI”, Círculo de Leitores, Lx: 2005.