sábado, 23 de outubro de 2021

A leitura silenciosa (II)

 


A leitura silenciosa foi tomando lugar ao longo da sociedade ocidental nos espaços da Europa e América do norte de um modo mais regular a partir do Iluminismo. As campanhas sobre o seu perigo, sobretudo para o público feminino desenvolveram-se significativamente no século XVIII. Mas essa leitura alimentou a construção de universos individuais mais livres. A leitura desenvolveu-se nesses períodos (séculos XVIII e XIX), integrados nos movimentos de industrialização, de maior democracia das sociedades e alfabetização generalizada já consumada no século XX.
 
Essa leitura silenciosa, sinal de uma liberdade e de uma independência assustou grupos que usavam abordagens moralistas, que viam nela algo perturbador da paz familiar e social.  a leitura era assim uma ameaça, justamente porque ao ser silenciosa integrava muitas possibilidades no domínio do privado, o que significava algo íntimo e fora do controle familiar, religioso e social. Só com a leitura silenciosa foi possível construir esta intimidade ente o livro e o leitor.
 
A leitura silenciosa nem sempre foi praticada. Quando ela emerge, já representa uma forma de emancipação. Foi no século IV que o bispo Ambrósio de Milão deu a conhecer justamente a Santo Agostinho uma ideia sobre a leitura que este desconhecia, pois relatou-a nas suas Confissões. E o gesto que causa espanto a Santo Agostinho é que foi encontrar o bispo de Milão a ler silenciosamente e que pela leitura se observava os seus olhos que deslizavam ao sabor de uma mensagem que se interiorizava em si. 
 
O que Santo Agostinho achou espantoso fosse que os olhos lessem, mas nenhuma voz se ouvisse. Santo Agostinho interrogou-se se não seria uma forma de não ser interrompido, tendo compreendido que aquela forma de ler, de modo silencioso permitia não só poupar tempo, como construir uma relação de intimidade com a leitura mais harmoniosa, enquanto o leitor permanece mais próximo de si próprio. O afastamento dos outros foi outra das possibilidades que Santo Agostinho reconheceu na atitude realizada na leitura silenciosa que observou.
 
Se no século IV ler em silêncio era considerada algo inesperado, significa que na Alta Idade Média e no período clássico a leitura era feita sobretudo pela voz que se ouvia. Ler era nesse tempo e foi-o em grande parte, em muitos momentos até ao fim do Renascimento, uma forma associada ao pensar e ao falar. Era a sua fonte de informação, a forma de construir uma relação com o exterior. Ler em voz alta era reconhecer o grupo e a ordem social.
 
A leitura silenciosa nasceu progressivamente nos mosteiros medievais e entre os escribas que faziam a cópia dos documentos. Mais tarde chegou à universidade e entrou nos círculos da corte e da aristocracia que detinham mais cultura. A sua integração na população foi muito lenta. O túmulo de Leonor de Aquitânia, que é do princípio do século XIII mostra-nos, ela deitada, num hipotético leito a ler, com o livro aberto nas suas mãos. 
 
O túmulo de Leonor da é sem dúvida uma leitura silenciosa, uma leitura para eternidade, no reconhecimento da ideia de que a leitura feita assim podia ser uma "alegria celestial". Sabendo que Leonor da Aquitânia promoveu as artes e a literatura, tendo sido sua padroeira e vivido os últimos anos num convento, confirma-nos a ideia que a leitura podia ser uma recompensa celestial. De certo modo, com Leonor da Aquitânia nasce de um modo diverso essa ideia da leitura, como um lugar de paraíso. Os séculos seguintes dariam outras formas a esse desejo singelo de Leonor.
 
Imagem: Leonor de Aquitânia, c. 1204, (Abadia de Fontevraud, Anjou - Maine-et-Loire).
 
Fonte: Stefan Bollmann, “Uma História da leitura, do século XIII ao século XXI”, C.L., Lx: 2005.
Imagem: Iluminura do século XIII (Bibliothèque Sainte-Geneviève, Paris, MS 2200, folio 58).
 

Sem comentários:

Enviar um comentário