segunda-feira, 6 de novembro de 2023


"Iremos juntos pela praia
Embalados no dia
Colhendo algas rochas e corais
Que na praia deixou a maré cheia

As palavras que disseres e que eu disser
Serão somente as palavras que há nas coisas
Virás comigo desumanamente
Como vêm as ondas com o vento

O belo dia liso como um linho
Interminável será sem um defeito
Cheio de imagens e de conhecimento (1)

Sophia foi, é alguém que é uma fonte de inspiração para nos fazer entrar num mundo, um reino muito especial. O reino de palavras, de ideias tecidas na procura de uma claridade, de uma luz que antecedam as sombras do mundo. As palavras como ferramenta para conhecer a claridade da azul-respiração das coisas, entre o vento e o mar, na construção de um cosmos que emerge do caos e nos dá o essencial da essência humana.

Sophia é uma das grandes figuras da literatura portuguesa dos últimos cem anos. Sophia de Mello Breyner Andresen, que fez da sua vida um encantamento por esse amor antigo e futuro de todas as ideias, concedeu-nos as palavras da pura claridade, o dia inicial criado do caos para nos harmonizar com o real. Sophia é um nome, uma paisagem, uma forma de olhar que tem inspirado sucessivas gerações a descobrir no real, uma forma de divindade por onde a sua palavra respira assombrada pela sua essência de simplicidade. Deu-nos uma respiração de coral e nela vemos a tão difícil, mas tão necessária, dimensão da autenticidade nos gestos e nas palavras.

 As palavras são, em Sophia, não uma descrição planeada ou imaginada do real, mas sim a descrição do olhar, o concreto onde sobressai a nossa dimensão humana. Com a sua arte poética e narrativa, temos uma escrita muito preocupada com os limites da existência humana, de onde emerge em simplicidade um encontro com a Natureza e em especial com o mar. Encontros de natureza diversa, de onde emergem os gregos e a sua aventura pelo conhecimento da inteligibilidade do mundo, os seus mitos. Por esse mar de casas brancas, onde o sonho, a descoberta de novos horizontes, o puro descobrimento, na ideia grega (altheia) de dar ao real um significado divino.

Sophia deu-nos uma obra literária marcada pela poesia, pelos contos, onde fez nascer um imaginário de conhecimento das imagens que nos levam ao real, à procura de uma essência do humano.

Da sua obra, destacam-se a poesia, como forma primeira de uma expressão da palavra, na respiração do mundo, e os contos, em que muito do seu imaginário foi levado a crianças mais jovens. Na poesia, publicou diversos títulos, como, No tempo dividido, Coral, Navegações, Ilhas, O nome das coisas, onde o deslumbramento pela palavra, a extrema sensibilidade e clareza tentam encontrar campos e horizontes de felicidade, numa procura de uma dimensão humana que se pretende afirmar acima de qualquer tempo.  

A luz que ela nos deu é clara e transparente como as manhãs nascidas de um tempo novo, não numa dimensão política, da usura de títulos, mas a de uma nobreza feita da que procura dialogar consigo própria, a da manhã branca, onde a claridade emerge de um dia alvo, desenhado e vivido de possibilidades que o real nos concede. As suas palavras deram-nos uma estética do maravilhoso, de quem se espanta pelo assombro do mundo, pela sua beleza e injustiça, num compromisso autêntico, livre e sublime, com a respiração que nos pode fazer herdeiros da maior inteireza possível. 

Sophia, viveu ela própria o sonho, aspirou por ele, lutou por ele, sonhou com esse dia novo, com essa construção substantiva do tempo, das ideias nobres, simples, da reconquista apenas por si, pelo movimento, pela graça, retirando as máscaras e desbravando no caos, a pureza inicial do homem. Sonhou com esse movimento de levitação, o sonho que uma “revolução” permitiria. Não a de ideias passadas, de caminhos de glória, mas a escrita no coração, a partir da página em branco, onde cada respiração e olhar vê o dia e o mar em absoluto maravilhamento.

 Conduziu-nos pela maresia, falou-nos dessa primeira liberdade, correu com o vento para que nós também sentíssemos a questão inicial, o sopro vivo da palavra comprometida. Infelizmente, nós não a compreendemos e temos muitos exemplos desta destruição pelo valor da palavra, onde a construção de uma comunidade se vê isolada da sua substância mais vital. Resta-nos com ela absorver o seu maior legado. O coração e as palavras que são sempre novas todos os dias, pois elas procuram construir um equilíbrio. 

Um equilíbrio que se sobreponha aos labirintos e ao caos, desvendando as sombras que no real nos afastam da essência. Palavras, como instrumentos para podermos abordar os dias, reconquistando um real a esse caos, tantas vezes usado e criado por desleixo e falta de vontade humana. Sophia abriu as palavras e com elas a realidade a nós, abrindo o Pórtico que ilumina cada homem que recebe esse bem sagrado que é a vida. As suas palavras são uma permanente iluminação, por onde se busca a mais perfeita claridade. Sophia criou um reino, uma linguagem que se exprime na sua Poesia, como uma forma de tornar possível, de fazer nascer um real onde se fragmentam os nossos passos de sol.

 (1) - Andresen, S. de M. B. ( ....) No tempo dividido. Alfragide: Caminho. 

sábado, 23 de outubro de 2021

A leitura silenciosa (II)

 


A leitura silenciosa foi tomando lugar ao longo da sociedade ocidental nos espaços da Europa e América do norte de um modo mais regular a partir do Iluminismo. As campanhas sobre o seu perigo, sobretudo para o público feminino desenvolveram-se significativamente no século XVIII. Mas essa leitura alimentou a construção de universos individuais mais livres. A leitura desenvolveu-se nesses períodos (séculos XVIII e XIX), integrados nos movimentos de industrialização, de maior democracia das sociedades e alfabetização generalizada já consumada no século XX.
 
Essa leitura silenciosa, sinal de uma liberdade e de uma independência assustou grupos que usavam abordagens moralistas, que viam nela algo perturbador da paz familiar e social.  a leitura era assim uma ameaça, justamente porque ao ser silenciosa integrava muitas possibilidades no domínio do privado, o que significava algo íntimo e fora do controle familiar, religioso e social. Só com a leitura silenciosa foi possível construir esta intimidade ente o livro e o leitor.
 
A leitura silenciosa nem sempre foi praticada. Quando ela emerge, já representa uma forma de emancipação. Foi no século IV que o bispo Ambrósio de Milão deu a conhecer justamente a Santo Agostinho uma ideia sobre a leitura que este desconhecia, pois relatou-a nas suas Confissões. E o gesto que causa espanto a Santo Agostinho é que foi encontrar o bispo de Milão a ler silenciosamente e que pela leitura se observava os seus olhos que deslizavam ao sabor de uma mensagem que se interiorizava em si. 
 
O que Santo Agostinho achou espantoso fosse que os olhos lessem, mas nenhuma voz se ouvisse. Santo Agostinho interrogou-se se não seria uma forma de não ser interrompido, tendo compreendido que aquela forma de ler, de modo silencioso permitia não só poupar tempo, como construir uma relação de intimidade com a leitura mais harmoniosa, enquanto o leitor permanece mais próximo de si próprio. O afastamento dos outros foi outra das possibilidades que Santo Agostinho reconheceu na atitude realizada na leitura silenciosa que observou.
 
Se no século IV ler em silêncio era considerada algo inesperado, significa que na Alta Idade Média e no período clássico a leitura era feita sobretudo pela voz que se ouvia. Ler era nesse tempo e foi-o em grande parte, em muitos momentos até ao fim do Renascimento, uma forma associada ao pensar e ao falar. Era a sua fonte de informação, a forma de construir uma relação com o exterior. Ler em voz alta era reconhecer o grupo e a ordem social.
 
A leitura silenciosa nasceu progressivamente nos mosteiros medievais e entre os escribas que faziam a cópia dos documentos. Mais tarde chegou à universidade e entrou nos círculos da corte e da aristocracia que detinham mais cultura. A sua integração na população foi muito lenta. O túmulo de Leonor de Aquitânia, que é do princípio do século XIII mostra-nos, ela deitada, num hipotético leito a ler, com o livro aberto nas suas mãos. 
 
O túmulo de Leonor da é sem dúvida uma leitura silenciosa, uma leitura para eternidade, no reconhecimento da ideia de que a leitura feita assim podia ser uma "alegria celestial". Sabendo que Leonor da Aquitânia promoveu as artes e a literatura, tendo sido sua padroeira e vivido os últimos anos num convento, confirma-nos a ideia que a leitura podia ser uma recompensa celestial. De certo modo, com Leonor da Aquitânia nasce de um modo diverso essa ideia da leitura, como um lugar de paraíso. Os séculos seguintes dariam outras formas a esse desejo singelo de Leonor.
 
Imagem: Leonor de Aquitânia, c. 1204, (Abadia de Fontevraud, Anjou - Maine-et-Loire).
 
Fonte: Stefan Bollmann, “Uma História da leitura, do século XIII ao século XXI”, C.L., Lx: 2005.
Imagem: Iluminura do século XIII (Bibliothèque Sainte-Geneviève, Paris, MS 2200, folio 58).
 

terça-feira, 23 de julho de 2019

A leitura silenciosa (I)

 

A leitura tem em si um espelho sobre o que foram as formas de evolução social e cultural ao longo de diferentes séculos. A sua afirmação dentro da sociedade do século XX, na evolução do seu papel formador de opiniões vinda de Oitocentos não permitem esconder o papel desconfiado que muitos tiveram dela. Os elementos mais conservadores na ordem social sempre temeram o seu papel, sobretudo porque ela podia ter grandes influências naquilo que podemos designar a ordem do privado, o espaço da intimidade.
As possibilidades de a leitura se realizar autonomamente na área do privado, significa que estava fora do alcance público e mais importante, escapava aos mecanismos de controle da sociedade, as suas ferramentas de vigilância. A leitura no espaço da intimidade reformulou os mecanismos do possível na ordem social, porque ela se fazia no interior do que é uma das suas mais belas formas de se realizar, a leitura silenciosa e individual.

A partir do Iluminismo já se pode falar de uma leitura silenciosa e ela certamente ajudou a compreender a necessidade de grandes transformações, alimentando caminhos de outros possíveis. Mas foi na Idade Média que essa construção da leitura silenciosa enfrentou significativas dificuldades. É conhecido o episódio de Santo Agostinho que nas suas Confissões retrata algo que o surpreendeu na leitura do bispo Ambrósio de Milão. O que Santo Agostinho achava admirável era que o bispo não lia em voz alta, mas apenas  fazia circular os seus olhos pelo livros. 

Esta leitura silenciosa do bispo Ambrósio era de um grande significado, pois o que os seus olhos liam eram contemplados no sentido em si, fazia-lhe poupar tempo e permitia a construção de uma relação íntima com o objecto da leitura. E era sem dúvida a construção de uma intimidade com o objecto das palavras, o seu significado e uma forma de refúgio do mundo, e, ao mesmo tempo uma forma de construção pessoal.

A leitura silenciosa permitia essa construção íntima e pessoal de um sentido, mas ela também revelava as possibilidades que um leitor pode desenvolver, naquilo que hoje damos o nome de Literacias. É significativo que uma leitura de olhar, uma leitura oblíqua, uma leitura de imagens reveladas são aspectos desconhecidos a um não leitor, a alguém que tem falhas de competência na leitura. 

Fonte: Stefan Bollmann, “Uma História da leitura, do século XIII ao século XXI”, C.L., Lx: 2005.
Imagem: Iluminura do século XIII (Bibliothèque Sainte-Geneviève, Paris, MS 2200, folio 58).

terça-feira, 9 de julho de 2019

Os perigos da leitura

 


A expansão da leitura em determinados círculos mais instruídos do século XVIII criou um conjunto de imagens que conduziram aquela para uma construção de imagens, de que a arte deu conta de um modo significativo. A leitura como prazer, já por aqui brevemente discutida oscilou entre a atribuição de um significado aos espaços de intimidade do lar e uma visão mais moralista, os pensamentos que os leitores acalentavam para eles próprios. Jean-Siméon Chardin e Pierre-Antoine Baudoin foram dois pintores, entre outros que deram corpo a essas duas visões sobre o prazer da leitura.

A leitura, no seu acto de ler foi ela própria analisada no interior da sociedade do século XVIII, como um fenómeno muito útil, pois incentivava a construção de uma vida mais virtuosa. Outros viam nessa ideia de trazer consigo um livro e a ele dedicar-lhe bastante tempo diário o sinal de um declínio inexorável dos costumes e da própria organização social. Alguns que se dedicavam ao comércio do livro chegavam a pronunciar a ideia fatal de que o livro tinha trazido tanta infelicidade à vida privada das pessoas, como a Revolução Francesa à vida pública da sociedade. 

Mesmo no interior do iluminismo chegou-se a ouvir que a leitura ao limitar os movimentos físicos e colocando muito valor na imaginação e no despertar das emoções daria um incentivo a modos de um certo vício aristocrático, como o tinham visto em séculos passados.  Foi uma campanha que se desenvolveu em finais de Setecentos no sentido de moralizar a sociedade e sobretudo de domesticar o alcance da leitura no feminino. Estas diligências não obstruíram o progresso da leitura individual na Europa e na América do Norte entre os séculos XVIII e XIX.

Apesar desses progressos, a leitura como fenómeno de grande alcance cultural e social apenas se concretizaria no século XX. E ocorreu no seio de grandes transformações sociais, como foram a industrialização, a democratização de algumas sociedades e as mudanças na educação. O século XX ao elevar a um grande significado as capacidades da literacia entre todas as classes sociais e ao prolongar a instrução no tempo favoreceu esta expansão da leitura. 

Estas transformações deram a possibilidade de acelerar o papel da leitura, como elemento transformador das sociedades e das possibilidades individuais de cada um.  E, nesse sentido, as ameaças da leitura vista em séculos anteriores tornar-se-iam o motor de uma real transformação da sociedade e trariam a todos, as imensas capacidades da leitura para mudar o pensamento e assim a acção de cada um no interior de um tempo social e cultural.

Imagem: copyright: Jean-Honoré Fragonard, A leitor, c. 1776, National Gallery of Art, Washington.
Fonte: Stefan Bollmann, “Uma História da leitura, do século XIII ao século XXI”, Círculo de Leitores, Lx: 2005.

segunda-feira, 3 de junho de 2019

O prazer da leitura (II)

A leitura cria em si múltiplas imagens, as do leitor em si, mas também aquilo que as obras de arte permitem desvendar  no nosso olhar. E, neste caso os objectos que aproximam a leitura dos espaços de intimidade, onde ela decorreu em diferentes momentos do passado podem também criar um conjunto de imagens, de ideias sobre a sociedade que viu nascer essas formas de expressão. O século XVIII foi em  muitos aspectos uma forma de explorar novas atmosferas, descobrir outras linhas para habitar o quotidiano.

Pierre-Antoine Baudoin pintou no século XVIII um quadro que nos conduz novamente ao prazer da leitura, embora aqui com dimensões novas. A marquesa de Pompadour figura conhecida da aristocracia e da realeza francesa de Setecentos tinha em Pierre-Antoine Baudoin o seu pintor preferido e a abordagem que ele faz neste quadro de 1760 é diferente do conhecido feito por François Boucher, onde a leitura aparece numa pose mais ocupacional do tempo. 

Aqui, no retrato de Pierre-Antoine Baudoin, a marquesa de Pompadour está numa atitude descontraída, habitada por um abandono, como quem descansa no seu quarto e onde se notam diversos objectos de um quotidiano, o biombo e o dossel da cama. Aqui ao contrário do quadro de François Boucher tudo se define numa ideia de letargia, a apontar a um sonho, permitida pela leitura. O livro escorrega-lhe da mão e cai acompanhando os outros objectos de uma intimidade feminina, o cão e o alaúde, assim como outros livros aparecem junto a uma mesa, onde ela descai a sua mão. 

A marquesa de Pompadour tem neste quadro uma representação de alguma letargia, a invocar uma intimidade que pode partir da leitura para chegar a outros domínios. O aberura do seu corpete revela uma intimidade de instante de quem prolonga o dia no seu quarto. O quadro revela-nos, como o salientou Rousseau uma ideia de uma viagem rápida entre o livro e o seu sonho que se define no globo e nos mapas numa das mesas do quarto. Na verdade, não sabemos se a atitude de letargia é um abandono ao próprio corpo, a uma prazer sensorial ou a uma espera de uma amante distante. 

A leitura enquadrada assim é sem dúvida uma construção de uma imagem de prazer, mas este pode ser mais alguma coisa, pode indicar que aquela é uma libertação capaz de construir ambientes frívolos, desgovernados de uma razão, de uma moral. No fundo o prazer da leitura poderá ser aqui a construção da ideia que o século XVIII assistiu por diferentes autores, da corrupção dos valores morais. Apesar das possibilidades desta interpretação, o que Pierre-Antoine Baudouin nos concede é algo mais elevado.

Diderot falou deles. Dessa clientela que sob o pano de uma moralidade de costumes eram apenas "abades insignificantes, jovens advogados de mente frívola, magnatas corpulentos e outras pessoas de mau gosto". No fundo todos os que observam e criticam esta abordagem frívola de uma mulher a ler o que pretendem é chegar a esses pensamentos sensuais que a sua figura profisisonal não aconselha. A hipocrisia de um mundo burguês expressa-se aqui de uma forma brilhante. A leitura emergiu no século XVIII como uma construção de atmosferas de intimidade, de um erotismo a caminhar para as possibilidades de um novo mundo, ainda que individual.

Imagem: Copyright – Pierre-Antoine Baudouin, A leitora, c. 1760, Museu das Artes Decorativas, Paris.
Fonte: Stefan Bollmann, “Uma História da leitura, do século XIII ao século XXI”, Círculo de Leitores, Lx: 2005.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

A leitura - um espaço do sagrado

Na liberdade criativa de uma vida, espaço formulado também pelas possibilidades da leitura existem histórias que nos deliciam. Ela também nos pode confinar a um ponto de esperança quando uma catástrofe ocorre. Passou-se com Dylan Thomas, o conhecido poeta irlandês, no tempo da sua infância. É ele próprio que a conta em A Child’s Christmas in Wales.

Uma vizinha da sua casa sofre um incêndio que consome uma sala inteira da casa. Após o fogo debelado que consumiu uma sala inteira e no meio da confusão e dos objectos encharcados, a senhora Prothero exclama esta frase deliciosa aos bombeiros: “Quererão agora ler um pouco?”.

Era um consolo naquela de bonomia de um tempo e de uma forma de ser, mas ela dá-nos também essa ideia tão necessária de que a existência e o real podem ser suportados, mesmo que ligeiramente pela literatura. O próprio Flaubert viu nesta inspiração uma espécie de “orgia perpétua”e com ela nos seduziu com as aventuras de Madame Bovary.

Esta orgia perpétua não é mais que uma forma continuada de ler, de encontrar nessa expressão não só a própria liberdade, mas também o seu significado mais primordial, uma ideia de sagrado, uma forma de individualmente aceder a um culto de divindade, próprio e irrepetível noutros.

Sim, a leitura não preenche a vida e esta aprende-se vivendo, mas como disse Günter Bruyn, “aprende-se da leitura, lendo”, e este foco sobre tantas vidas de tantas possibilidades e experiências é sem dúvida um modo de com esse olhar chegar a um conhecimento que nos ilucida a nós próprios sobre a nossa própria vida. Essa orgia de leitura acaba por superar muitas vezes a nossa própria experiência, pois ela é muito variada e rica nas leituras feitas. Não só se está perto da vida dos outros lendo, como se acede a um amor, “ama-se o amor dos outros”, nas palavras iluminadas de Elke Heidenreich.

A leitura permite pois, uma construção individual, mas também pode apresentar-se como alienação do real, capaz de alguns desastres. Bluma Lennon morreu na esquina de uma rua de Buenos Aires ao ler um poema de Emily Dickinson que a fazia desligar do real, segundo a narrativa inicial de A Casa de Papel. É um ponto extremo, mas todos sabemos que ao longo dos séculos XVIII e XIX a advertência aos perigos da leitura eram uma forma de condicionar projectos de vida, de amarrar pessoas, e, sobretudo mulheres a modelos sociais e culturais.

É ainda de Elke Heidenreich essas palavras que nos devolvem o valor inestimável da leitura. “A leitura questiona não só o projecto de vida, como também as directivas de instâncias superiores, tais como Deus, o marido, o governo e a Igreja. A leitura dá asas à fantasia e esta última afasta do presente, mas para onde?” Pergunta importante, pergunta sem resposta, pois depende da individualidade, da história de cada um. Tudo na leitura é fonte e processo incontrolável.

E todos sabemos que os legitimados nas palavras burocráticas, como sacerdotes e governos desconfiam das palavras voadoras, das palavras incontroláveis, essas que amamos na respiração das coisas. E, talvez só Deus mesmo nos acompanhe nessa compreensão pela viagem das palavras, como o sentiu Virginia Woolf ao dizer-nos que o próprio Deus acolhendo todos no seu trono celestial dirá, “Olha, estes não precisam de recompensa. Nada temos para lhes dar aqui. Eles amavam a leitura.”

Imagem: Copyright – Duncan Grant, O fogão, Fitzroy Square, 1936, Espólio de Ducan Grant. (via https://theartstack.com)
Fonte: Elke Heidenreich, “Do perigo de as mulheres lerem demasiado”, in Stefan B0llmann, Uma história da leitura desde o século XIII ao século XXI, Círculo de Leitores, Lx: 2005.