quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Da casa de papel (I)


A cidade era modestamente recente, feita dessas novidades de novos colonizadores, artefactos de comunicação à procura de novidades, como instantes de repouso nos olhos dos deuses. Atrás desse tempo comemorativo de grandes conquistas, ruas empoeiradas de mendigos traziam os velhos despojos dos que não foram reabilitados para a iconografia de novos sucessos.

O porto ainda trazia as gaivotas e os gansos de longas distâncias, onde caminhavam crianças adormecidas no rasto dessa liberdade de ave e onde novas lojas se abasteciam dos peixes entornados do mar, vivos ainda de maresia e azul. Entre essas crianças e eu próprio vestiram-se edifícios novos, lojas de novos conquistadores, como se o tempo fosse uma grosseira construção de escolhidos. Nas margens da doca ouviam-se sons de realejo, os desfasados do sucesso a pedir esmolas, mas também a colorir voos rasantes com uma tristeza soturna de quem pede pão, um sinal de uma lágrima a querer voar, como um beijo numa face.

Na parte velha da cidade, arqueológica, de pedaços de um tempo esquecido, uma Nothing Hill de outras latitudes arruma frutos tropicais e livros antigos, contos de aztecas e maias entre as novidades do mercado castelhano, avassalador de traduções, enigmas de um tempo a construir. Abandonei essa circulação estratégia de palavras, por onde em prateleiras distantes velhos livros de sabedoria ainda se consumiam em totens de outros tempos, de outros sonhos. E vi neles essa importante forma de passar o tempo com vozes que nos quer fazer compreender algo, distribuir algumas formas de delicadeza, como quem se oferece na sua própria revelação. 

Delicadeza como quem revela segredos, sempre eternos do próprio sentido humano. Emoção e mistério confirmando o livro como janela de luz sobre a vida, suporte de entendimento para ela própria em vozes nascidos no enigma do próprio tempo. No centro da cidade El Ateneo é uma referência. Arte em si e na divulgação do livro. Um templo. Não admira que Borges visse esse conto de fantástico como a energia possível do paraíso.

(A partir de uma viagem pelas ruas de Buenos Aires e com o coração em Buenos Aires).

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