O livro foi no século XVIII e XIX, memso quando aspirava um pouco a ser um instrumento de mudança cultural, permanecia ainda permanecia uma ferramenta condicionada pelas ideologias, pelo poder político, pela dominância social e económica. Nesses tempos que podíamos datar como o espaço do romance oitocentista, Madame Bovary é ainda um sinal dessa memória de um processo. Os livros começavam a circular pelo universo feminino, mas a iconografia do objecto ainda era muitas vezes uma lembrança das obrigações sociais e económicas.
O livro em si era apenas uma possível forma de
perder tempo. O leitor quando lê encontra ou pode encontrar a forma de uma luz
capaz de olhar o mundo, de o compreender, ou de lhe dar significado. Se a
encontrar pode ousar quebrar as regras formuladas e no feminino, no espaço de
oitocentos essa é um pouco a história da leitura. Voltemos a esse exemplo, a de
Madame Bovary. É verdade que ela lê, embora seja esses romances cheios de casos
amorosos que ela usava para preencher a sua vida. Curioso que uma das personagens
diga sobre Ema Bovary que passa o tempo a “ler romances ruins, livros contra a
religião e com palavreado tirado de Voltaire!”
Caso Ema Bovary lesse
Voltaire talvez ela tivesse tido a possibilidade de encontrar um significado
para as suas aspirações, para os seus desejos individuais. E no fim, tal como
as heroínas dos romances que lia, ela toma arsénico que a conduz a um fim. Ema
Bovary lia, mas ela não lhe deu essa conjugação de com as palavras pensar a sua
vida, de reformular a sua vida pessoal e é nesse caso uma actividade perigosa,
capaz de imaginar mundos impossíveis de concretizar.
A
leitura conduz
experiências no mundo da ficção, mas não torna possível que tenhamos a
mesma
abordagem estética do que é lido, não nos devolve as palavras que
devemos usar.
Essas só podem ser nossas. É um campo de experiências, não é uma
resposta de
ideias absolutas. No fundo a leitura congrega informação, prazer,
abandono a
uma experiência momentânea de solidão com o leitor e um pouco também com
o
escritor. E, se no fim o leitor existe é porque ele encontrou algo que
lhe
prendeu a atenção. Daí pode nascer um acto de rebeldia, um isolamento,
um
esquecimento do formal quotidiano. Daí pode nascer um momento de
liberdade,
suspenso noutras latitudes, noutras afeições, num outro real. A leitura
no feminino em oitocentos conduziu-se muitas vezes por essa fronteira,
ainda que apenas no espaço dos ambientes de intimidade.
Imagem: E. Burne-Jones,
retrato de Katie Lewis, 1896, colecção particular, Bridegman Giraudon
Fonte: Elke Heidenreich, “Do perigo de as mulheres lerem demasiado”, in
Stefan B0llmann, Uma história da leitura desde o século XIII ao século XXI,
Círculo de Leitores, Lx: 2005.
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