segunda-feira, 11 de março de 2019

A leitura e o ler


O livro foi no século XVIII e XIX, memso quando aspirava um pouco a ser um instrumento de mudança cultural, permanecia ainda permanecia uma ferramenta condicionada pelas ideologias, pelo poder político, pela dominância social e económica. Nesses tempos que podíamos datar como o espaço do romance oitocentista, Madame Bovary é ainda um sinal dessa memória de um processo. Os livros começavam a circular pelo universo feminino, mas a iconografia do objecto ainda era muitas vezes uma lembrança das obrigações sociais e económicas. 

O livro em si era apenas uma possível forma de perder tempo. O leitor quando lê encontra ou pode encontrar a forma de uma luz capaz de olhar o mundo, de o compreender, ou de lhe dar significado. Se a encontrar pode ousar quebrar as regras formuladas e no feminino, no espaço de oitocentos essa é um pouco a história da leitura. Voltemos a esse exemplo, a de Madame Bovary. É verdade que ela lê, embora seja esses romances cheios de casos amorosos que ela usava para preencher a sua vida. Curioso que uma das personagens diga sobre Ema Bovary que passa o tempo a “ler romances ruins, livros contra a religião e com palavreado tirado de Voltaire!”

Caso Ema Bovary lesse Voltaire talvez ela tivesse tido a possibilidade de encontrar um significado para as suas aspirações, para os seus desejos individuais. E no fim, tal como as heroínas dos romances que lia, ela toma arsénico que a conduz a um fim. Ema Bovary lia, mas ela não lhe deu essa conjugação de com as palavras pensar a sua vida, de reformular a sua vida pessoal e é nesse caso uma actividade perigosa, capaz de imaginar mundos impossíveis de concretizar.

A leitura conduz experiências no mundo da ficção, mas não torna possível que tenhamos a mesma abordagem estética do que é lido, não nos devolve as palavras que devemos usar. Essas só podem ser nossas. É um campo de experiências, não é uma resposta de ideias absolutas. No fundo a leitura congrega informação, prazer, abandono a uma experiência momentânea de solidão com o leitor e um pouco também com o escritor. E, se no fim o leitor existe é porque ele encontrou algo que lhe prendeu a atenção. Daí pode nascer um acto de rebeldia, um isolamento, um esquecimento do formal quotidiano. Daí pode nascer um momento de liberdade, suspenso noutras latitudes, noutras afeições, num outro real. A leitura no feminino em oitocentos conduziu-se muitas vezes por essa fronteira, ainda que apenas no espaço  dos ambientes de intimidade.

Imagem: E. Burne-Jones, retrato de Katie Lewis, 1896, colecção particular, Bridegman Giraudon
Fonte: Elke Heidenreich, “Do perigo de as mulheres lerem demasiado”, in Stefan B0llmann, Uma história da leitura desde o século XIII ao século XXI, Círculo de Leitores, Lx: 2005.

 

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