"Ler para quê? E escrever, para quê? Depois de ler cem mil, dez mi livros durante a vida, que se leu? Nada. (...) Ler não serve para nada, é um vício, um puro prazer, uma felicidade". (1)
Desde que entrámos na
porta da História, se há algo que caracteriza a aventura humana são as
palavras. Suporte desse material onde a linguagem organiza o conhecimento, a
dúvida, a emoção e o sonho, os livros são a nossa memória. Conseguirá essa
memória da palavra apresentar satisfatoriamente os sonhos do quotidiano?
Afinal que papel
desempenham no quotidiano vivido de cada um a leitura e a escrita? Não serão
aquelas signos materiais afastados das nossas necessidades pessoais? Na
sociedade da imagem, que valor podem ter o livro e a leitura com a inevitável
falta de tempo, onde a contemplação do horizonte parece apenas destinado aos
que se situam à margem do sucesso virtual. A acrescentar a estas dificuldades,
uma mais. Que livros escolher e quais deixar de lado, quais seleccionar,
aqueles que nos «permitiriam melhor relacionar com o Universo», nas palavras de
Gabriel Zaid. Como contornar este labirinto?
O livro nasceu como
produto cultural no momento e no tempo em que a difusão de novas ideias
permitia organizar outros modelos sociais. O livro trouxe-nos da História esses
momentos de emancipação individual. O livro e a sua difusão estão ligados à
criação dessa liberdade onde cada um pode ouvir a sua respiração e onde estão
dispensados os sacerdotes do templo para que fundamentem o significado das
acções humanas.
O encontro do homem
com o livro é o resultado de uma acção que pretende afinal estabelecer uma
«conversação» que faça da vida um caminho com significados. Afastados dessa
liberdade criativa que a cultura greco-romana ou o renascimento afirmaram tão
alto, vivemos num tempo absurdo em que da pior maneira verificámos que a nossa
tecnologia e doutrinas económicas não souberam salvaguardar a dignidade
individual. Tantos milhões de anos de História para concretizarmos uma
sociedade com fundamentos de uma solidez feita de aparências.
Neste País onde o
estudo do Grego, do Latim, da Filosofia, da Arqueologia são um passatempo para
lunáticos, dispensável na formação da maioria, pode-se aspirar à organização do
pensamento? Um País onde sai mais barato fazer exercícios para tratar do corpo
do que alimentar o espírito, onde se deslocam objectos de memória sem
conhecimento, onde tudo vale apenas pelo valor funcional. Sem valorização da
identidade, da diferença, um caminho de ícones de plástico, onde se dispensa
ser. Aspira-se aparentemente a ideias, mas sem leitura crítica, como se fosse
possível presente, sem memória. O livro, a memória, a sua humanidade está em
stand by, numa fogueira de vaidades pessoais.
O livro contém si o
universo dos possíveis, encerra em si o leitor e apesar da sua magia deposita
também nele e em nós,imensas fragilidades. Poderíamos comparar o livro à
vindima da uva e ao seu produto, o generoso vinho. Quem o sabe apreciar não o
dispensa, quem não o conhece vive afastado de uma beleza sem tempo. É verdade
que o livro não regista a vida, a construção do quotidiano. Ele tal como a
vindima é o produto, a colheita de um esforço humano, de uma inspiração da
memória. É igualmente verdade que não poderemos ler todos os livros, nem sequer
os que consideraríamos mais interessantes. E é sobretudo verdade que a natureza
humana não está pensada para ser dominada por uma língua universal, numa aldeia
global onde se determina tudo a todos e do mesmo modo.
A actual crise
económica e social revela como mal preparados estão os agentes do poder
político, os que organizam o domínio social e económico. Tantos já prevêem o
fim do livro e nenhum soube compreender o seu próprio tempo, nem os movimentos
que o organizam. Tantos afirmaram o fim da História a caminho de uma felicidade
garantida pelos meios tecnológicos, pela clarividência dos princípios e afinal
aqui estamos tão sós de sonhos, ainda à espera do «dia inicial e limpo» , como
expressava Sophia.
Mais uma vez se
comprova que a Humanidade dá-se melhor com uma Torre de Babel onde cada aldeia
é um Universo, um centro de uma ideia de vida do que na vasta globalização. O
homem vive na sua natureza de uma universalidade limitada. Estas fragilidades
do homem, do leitor e da vida são oportunidades. Podem ser as nossas
oportunidades. Elas permitem-nos compreender que a vida humana é feita de
momentos.
É o livro que nos dá
essa revelação, essa relatividade de que todos somos feitos. «O livro não
oferece nenhuma explicação acerca do destino do homem, mas tece uma apertada
rede de convivências entre a vida e ele», nas palavras de Daniel Pennac,
expressam bem o motivo de o homem pela sua mortalidade aspirar aos sonhos, às
emoções e é esse é o fundamento da escrita. Esperamos assim da leitura, o que
Gabriel Zaid no seu pequeno, mas íntimo livro consegue estabelecer connosco,
uma «conversação». E não é isso a vida, entre a alegria e o absurdo, uma
tentativa de construir um diálogo? O homem e o livro aproximam-se assim, «na
definição de constelações que promovam a conversação para o bem comum», ainda
nas palavras de Gabriel Zaid. As Bibliotecas são neste contexto apenas um dos
instrumentos para organizar, promover e difundir esse diálogo comunicativo
essencial ao Homem. O livro pode dar-nos essa intimidade do diálogo, num mundo
de cegos.
(1) - Gabriel Zaid,
Livros de mais, Ler e publicar na era da abundância, páginas 49 e 116)
Imagem - sem
referência de autoria na Web.

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