Biblioteca imaginária é aquilo que cada um é, o vivido e o sonhado, o
combatido e o criado. Biblioteca Imaginária formaliza-se nos leitores, nas suas
construções intimistas, mas também nos escritores, nesses desejos de reerguer
possibilidades, como visíveis linhas de um real.
Ossip Mandelstam foi um dos grandes escritores, ou poetas russos que
sucumbiu ao regime dos camaradas, aí, onde toda a palavra era um argumento de
traição, embora eles próprios não soubessem nunca muito a quê. Os seus breves
poemas foram queimados, mas Nadeshda, sua mulher registou-os todos mentalmente
e voltou a escrevê-los e preservou-os. Ela que escreveria “Hope against Hope”
na denúncia do regime comunista de Estaline fez aquilo que mais importa a um
leitor, registar na memória as palavras impedidas de nascer ao sol, à
respiração das coisas.
O feito de Nadeshda Mandelstam foi o de ser uma leitora,
uma criadora de uma Biblioteca Imaginária. Os leitores, mas sobretudo as
leitoras têm desempenhado essa missão generosa de guardar tesouros, de os
partilhar com os outros. Às vezes algo interrompe essa generosidade por uma
outra. Chamam-lhe amor, mas sendo ele tanto de sedução e fragilidade, há quem
considere que o amor na literatura é mais perene, talvez mais feliz. Às vezes o
amor suspende as lutas políticas, ultrapassa-as. O Doutor Jivago mostra-nos
isso, também de um escritor russo a compor um fresco sobre a transformação
política e o modo como as pessoas se envolvem, se definem entre si.
Outro
escritor russo, Boris A. Lavrenev escreveu “O Quadragésimo Primeiro”, narrativa
entre dois opositores na grande estepe russa, um homem e uma mulher em campos
opostos da disputa política. O amor quase supera essa diferença. Ela acaba por
matá-lo, pois a consciência de classe é uma mortalha para espíritos
burocráticos. Elke Heidenreich quando nos contou este episódio diz-nos algo
sobre essa diferença entre leitores e leitoras. Antes do fim, um pequeno livro
de poemas que ela escreveu serve de mortalha para os desejos que ele tem em
fumar. Ela perde os seus poemas, todas as palavras desfeitas em fumo e cinzas.
O inverso sucederia? Dar-lhe ia ele os seus poemas para as suas mortalhas?
Talvez não. Ele talvez exigisse os seus poemas perto do coração.
A história levou Elke Heidenreich a concluir que sendo as mulheres leitoras
de uma frequência maior que os homens estarão numa postura de maior dádiva e
disso deriva um temor masculino. O de que mulheres leitoras são uma forma de
ser que é temido, por tudo aquilo que a leitura concede. A História cultural e
social dos últimos séculos rapidamente nos assegura que foram elas a desbravar
páginas para construir na intimidade outras formas de conhecer e de ser.
Vittorio Matteo Corcos pintou um quadro que denuncia esta ideia de que as
palavras pelo feminino desencadearam uma chama capaz de outras possibilidades,
de um outro real. A imagem não nos revela uma leitora a ler, mas sim,
observamos a construção mental das ideias, as palavras lidas a construir
desejos e sonhos. Os livros que a acompanham são vários e isso transmite a
ideia de uma procura larga pelo conhecimento, por uma luz capaz de desbravar
quotidianos num outro sentido. Há na sua expressão um desafio de quem
compreendeu que do seu hábito de leitura nasceu um desafio, uma determinação, a
capacidade de romper com uma atitude, quase um nascimento.
Imagem: Vittorio Matteo Corcos, Sonhos, 1896, Galeria Nacional de Arte
Moderna, Madrid
Fonte: Elke Heidenreich, “Do perigo de as mulheres lerem demasiado”, in Stefan
B0llmann, Uma história da leitura desde o século XIII ao século XXI, Círculo de
Leitores, Lx: 2005.